17/08/2008

Canto das Sereias II

(...) Ter que ser amarrado para ouvir - e ao mesmo tempo para evitar a sedução das sereias -, antes de tudo, mais do que a epopéia de uma força de vontade, como sugere a narrativa de Homero, evidencia a covardia de uma vontade que pretende recusar à multiplicidade de mundos no mundo, para fechar-se apenas no mundo da razão instrumental, esta que não conhece senão a façanha de sua vontade de colonizar, ignorar, matar, explorar, enganar, em nome do império de poucos, em nome de nomes próprios, de sangues azuis, de uma genealogia de poucos acantonados em seus próprios impróprios poderes, hierarquias, domínios, vantagens, privilégios:(...)

Um pouco do texto, sobre Herberto Helder, tirado daqui: Agulha.
Mais: (...)Em termos contemporâneos, perder os cheiros do mundo, perguntar sobre o vinho, o vinho?, constitui uma espécie paradoxal de despiste, um jogo de cena, a que chamamos hoje de negociação, e cujo paradigma continua sendo a exemplaridade da versão homérica do mito das Sereias, em Odisséia, cuja divisa pressuposta é: para poder ouvir o canto das sereias, vale dizer, para negociar com o canto das diferenças, é mister ouvir sem se seduzir pela potência perturbadora do canto alheio, do canto da diversidade, configurando o modelo de uma negociação hipócrita, porque continua amarrada em seu lugar, em sua própria identidade, em sua própria visão de mundo, em seu próprio modelo civilizatório de gênero, de etnia, de classe, de antropocentrismo, vale dizer, continua amarrado no modelo dominante da heterossexualidade patriarcal, monogâmica, publicitária, plutocêntrica, antropocêntrica, anglo-saxônica, sendo, portanto, uma negociação que apenas negocia a si mesma, que usa e abusa das polifonias alheias para melhor afirmar a sua monotonia imperial, que lembra das diferenças de cultura, de civilizações, de devires outros, para esconjurá-los do quotidiano, do dia-a-dia; que lembra, enfim, porque esqueceu de vivê-las, de experimentá-las, sem mastros e sem farsantes negociações, porque está morto e já não pode ser senão ritual de lembranças, como sugere a continuação do mesmo poema de Herberto Helder:"Então lembrarei a vermelha resina, o espesso/ murmúrio do sangue./o acre e sobrenatural aroma das acácias./Tentarei encontrar uma forma. Guitarras pensarão a alegrias noturnas./Com beijos antigos um momento ainda queimarei/o corpo solitário da amada, direi palavras de uma ternura de azêbre./Uma lua partida penderá do meu sexo morto/ e uma vez mais me perderei, dizendo: o vinho?/ Rosa a rosa murcharão meus ombros"

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